Na tentativa de compreender o pensamento da sociedade atual é primordial saber da história e observar a evolução ao longo do tempo. Todo problema precisa ser observado, discutido e entendido, para enfim se chegar a alguma conclusão. Com o autismo, assim como as diversas anomalias e diferenças, não é diferente, o que muda no entanto, são as várias ideologias que acarretaram muitas direções, e muitas dessas direções e atitudes hoje são condenadas e chegam a parecerem cruéis.
Em 1o de setembro de 1939, começou a II Guerra Mundial, e como Diogo Mainard relata em seu livro A queda, (ed. Record, 2012), parapessoas com vidas inúteis de serem vividas, o programa de eutanásia de Adolf Hitler, assegurava uma morte piedosa. Essa é uma linha hoje entendida como errada, porém, já ocupou seu momento no cronograma de atitudes a serem tomadas a fim de dar conta dos doentes mentais. Durante muito tempo o estado tinha mais direito sobre as pessoas do que os próprios familiares. Pais viam seus filhos sendo retirados deles e não sabiam o que fazer. Andréa Werner em seu livro Lagarta Vira Pupa (CR8 editora, 2016), descreve as dificuldades sociais sofridas no dia-a-dia, mesmo hoje em pleno século 21. Diogo é pai de um filho com paralisia cerebral e Andréa Werner é mãe de um menino autista. Ambos recorreram à história para saber o que fazer e como lutar pelos seus filhos perante a sociedade tão marcada pela necessidade de produtividade e por falta de entendimento.
Esse trabalho foca em dois meninos autistas e sua família, por esse motivo, compreender as necessidades e anseios familiares faz parte da pesquisa. Todavia, o pensamento dessa família sofreu influências, e provavelmente, foi moldado por um plano de fundo maior, que precisa ser analisado.
1.1 Situando o autismo na linha do tempo
O ano presente é 2018 e muitas pesquisas estão sendo realizadas em função do autismo. Há campanhas de conscientização em torno do mundo e shows beneficentes para arrecadar fundos para a causa não são raros. Como já pode ser visto por exemplo em 2012 num dueto entre Katy Perry e a menina autista Jodi DiPiazza na Beacon Theatre, na Broadway, que chegou a arrecadar mais de oito dígitos para a causa nos Estados Unidos. No entanto, voltar no tempo é imprescindível, pois apesar do grande número de material produzido, há muitas linhas que já entendemos como erradas, como o mito das vacinas que seriam umas das causadoras do autismo, gerando um grande pânico na sociedade, forçando às autoridades a investir muito dinheiro conscientizando as pessoas que vacinas eram seguras. Este é apenas um exemplo de como ainda o recente tópico – autismo – precisa ser discutido e estudado, tornando-se sólido.
A história do autismo como conhecemos hoje, começou a ser escrita nas décadas de 30 e 40, no século passado com o Psiquiatra Leo Kenner, ou seja, um estudo médico recente. Kenner, em umas das suas entrevistas disse que ele não havia descoberto o autismo, pois este já existia. Baseado nesta afirmação, um grupo de pesquisadores da Universidade de Michigan, chegou a um sapateiro russo chamado Basil, nascido em 1469, que teve seu caso classificado na época como “loucura de Cristo”, e posteriormente, após análise dos sintomas se considerou um possível caso de autismo. Nessa época, casos como este eram enaltecidos pela sociedade, e as características chegavam a ser consideradas uma santidade. Os habitantes locais acreditavam que Basil agia de tal maneira por escolha, abrindo mão de todo o conforto e prazeres, além dos incríveis “sacrifícios” testemunhados, como andar em brasa para pegar o próprio alimento.
Outro caso conhecido é o do francês Victor de Aveyron, que ficou conhecido como um menino selvagem, com estranhas preferências alimentares e sobrenatural falta de sensibilidade ao frio. Entre outros sintomas que posteriormente se enquadravam como um caso clássico de autismo.
Tanto o caso de Basil quanto o caso de Victor confirmam a teoria de Leo Kenner que acreditava ter nomeado algo que já existia. O primeiro caso de autismo com o nome conhecido e com sintomas mais definidos e alinhados com os de hoje foi o de um menino americano, de família letrada, chamado Donald Triplett, nascido no dia 8 de setembro de 1933. Filho de Mary e Beamon.
1.2 Primeiro caso estudado e classificado do autismo
Mary and Beamon perceberam que havia algo de errado com seu filho logo nos primeiros anos de vida do menino, e como era praxe na época, foi institucionalizado. Crianças “defeituosas” eram consideradas um peso para os pais e para o estado, leis defendiam que estes fossem retirados da sociedade e que deixassem a sociedade produtiva prosperar. Casos de esterilização de pais que concebiam “crianças problema” e até o extremo da eutanásia não são exceções nesse período.
Sem saber o que ocorria com seu filho, a família Triplett tentou tudo, e ao perceber que a instituição não trouxera benefícios, contra a vontade dos médicos da época, retiraram Donald do hospital psiquiátrico e buscaram uma escola que os apoiassem. Além de um médico disposto a entender seu filho, o então psiquiatra Leo Kenner. Por serem uma família respeitada, uma escola da pequena cidadezinha onde moravam, acabou recebendo o menino “esquisito”. Não foi fácil, porém Donald conseguiu concluir a primeira etapa de seus estudos.
Leo Kenner era um psiquiatra austríaco, com a segunda guerra ao fundo. Ele foi para os Estados Unidos buscando se livrar dos terrores do centro da guerra. Movido por desafios e com uma personalidade sensível as necessidades do ego das pessoas detentoras do poder, suas pesquisas eram reconhecidas como válidas. Ao conhecer o pequeno Donald ficou intrigado, pois os nomes classificadores das doenças mentais existentes na época, não se encaixavam no que observava. Retardamento mental, esquizofrenia entre outros não se enquadravam no que havia observado por alguns anos. Além de Donald, Kenner estava acompanhando outros 10 meninos que possuíam características semelhantes e familiares estarrecidos com a rotina que este os impunha. Privação do sono, agressividade entre outros problemas eram relatados principalmente pelas mães. Quando Mary, mãe de Donald cobrou ao médico um diagnóstico, surgiu o termo “Autístico” e posteriormente foi classificado como autismo infantil. A partir daí a necessidade de se entender o que causava esse distúrbio foi crescente.
1.3 Mães geladeiras
Na busca por motivos da causa do autismo surgiu Bruno Betelheim, formado em artes, um judeu refugiado nos Estados Unidos que se auto intitulou doutor e começou a atuar na psiquiatria. Ele encantou os americanos com histórias, que segundo ele, ocorreram nos campos de concentração alemãs. Com escrita convincente, Bruno se consagrou como pessoa conhecida entre os acadêmicos. Com suas pesquisas, ele chegou à conclusão que o autismo era causado por mães insensíveis e que não amavam seus filhos. Essa causa, tida como uma explicação plausível, foi confirmada inclusive por Leo Kenner e pegou de surpresa as mães da época, que não entendiam como isso era possível, uma vez que sempre tinham feito tudo que estava ao alcance pelos seus filhos.
Com grande vergonha, todas as mães de crianças diagnosticadas autistas eram encaminhadas para tratamento e/ou para aprenderem a ser mães. Outro fato citado nos artigos tanto de Bruno quanto de Kenner, era o fato dos autistas serem de famílias letradas. Justamente por isso, essas mães e seus maridos começaram a reivindicar novas pesquisas, e numa palestra anos mais tarde, Leo Kenner disse que isso não havia passado de um mal-entendido e disse aos pais presentes “Eu os absolvo”, trazendo paz para muitos presentes. Paralelamente Bruno não abandonou sua teoria, que caiu por terra apenas no fim da década de 60. Outra teoria não confirmada foi que autistas apenas nasciam em famílias cujos pais eram inteligentes e bem-sucedidos.
1.4 Enquanto isso na Segunda Guerra
Paralelamente ao que tinha acontecido nos Estados Unidos, ocorreria a segunda guerra, que em sua essência, buscava uma sociedade superior. Com base nesse fundamento, as crianças com os diversos problemas mentais e consideradas ineducáveis, descritas na literatura nazista com inúteis, eram enviados para eutanásia, que passava por julgamento médico numa instituição conhecida como Spiegelgrund, que parecia um hospital infantil. A morte das crianças acontecia através do medicamento fenobarbital, que ao longo dos dias causava problemas pulmonares, permitindo que a causa da morte nos documentos fosse registrada como pneumonia. Essas crianças tinham seus cérebros retirados e estudados.
Nesse processo, o médico Hans Asperger pesquisava 200 meninos, se apropriando da palavra autismo. Ele percebeu algumas diferenças com relação aos estudos iniciados por Kenner. Entre essas diferenças estavam a oralidade, e apesar das perdas socias, esses meninos aprendiam e eram bem-sucedidos no que se propunham a fazer. E esse tipo de autismo mais leve teve o nome de Síndrome de Asperger até o último DSM.
1.5 Educação
Os anos seguintes foram marcados por lutas familiares, principalmente nos Estados Unidos, para que os autistas tivessem acesso à educação. Foi a partir de 1970 que alguns famosos se filiaram a causa. Não por acreditarem na causa propriamente dita, mas pelas famílias dos autistas serem persistentes e alguns serem amigos de celebridades.
Harriet Casto, uma mulher que havia sido separada do seu irmão quando ainda eram pequenos pois ele havia sido institucionalizado, ao ler e estudar artigos e revistas sobre o autismo – nesse período o assunto se tornara popular – lembrou-se das características do seu irmão nascido em 1919. Por isso procurou Ruth Sulivan, uma mãe de autista que estudou e se formou, superando as dificuldades de criar o filho e que já havia sofrido muito com as pessoas que ainda acreditavam no mito da mãe geladeira. Seu objetivo era incluir seu filho e outros autistas nos sistemas de educação, tornando-se respeitada pela comunidade. Na verdade, isso era quase uma regra. Pais de autistas buscavam estudar e ter alguma influência política e social. Por essa razão Harriet pediu a Ruth que analisasse seu irmão Archie Casto que havia sido levado para uma instituição aos 5 anos e internado até então. Após esse processo, com um laudo fornecido por Ruth, Harriet conseguiu enfim retirar seu irmão de um dos lugares conhecidos por torturar os doentes e percebeu que poderia tentar ensiná-lo sobre coisas rotineiras pela primeira vez. Archie começou a receber algum tipo de instrução após seus 70 anos e foi considerado o autista com vida mais longa. Nos Estados Unidos a casa CASTO ainda é conhecida e está no mesmo lugar, servindo de referência para os autistas.
Esse foi um dos casos aqui usados para exemplificar como o acesso à educação era praticamente impossível, mas na verdade, o fato de pessoas institucionalizadas se repetiu muitas vezes e poucas vezes foram revistas afim de tentar ensinar algo as pessoas “ineducáveis”. Os direitos e lutas de crianças deficientes começavam sempre por um familiar em busca de respeito e inclusão. Com a disseminação da informação dos maltratos que os doentes enfrentavam nos hospitais, esses ambientes foram extintos, mas a existência deixou marcas.
Enquanto todo esse movimento ocorria, cientistas testavam LSD para tratar os autistas, porém com o uso recreativo e com o fechamento das indústrias produtoras na Europa, muitos deles começaram a recorrer ao Behaviorismo, método que teve seus primeiros relatos em estudos com animais e cuja descoberta ocorreria de forma acidental inicialmente. Cientistas da época usavam números alcançados e analisados em pesquisas afirmando que na verdade eles estavam quantificando o que já era senso comum. Algumas crianças foram selecionadas e passaram por diferentes modos de teste. Um cientista chamado Ivar Lovaas fez uso de choque para infringir dor intensa nos autistas todas a vezes que estes tinham comportamentos que ele queria desestimular, exatamente como foi feito em animais e ao conseguir resultados, Lovaas se concretizou no estudo com autistas e apesar de seus métodos serem um tanto quanto brutais, conseguiu se colocar entre uns dos pesquisadores mais bem sucedido da época. Outros pesquisadores também tentaram entender o comportamento do autistas e testaram métodos menos agressivos em suas terapias. Um exemplo é um menino que de auto mutilava e se machucava. Esse menino precisava usar óculos e a família entendia a dificuldade que seria essa adaptação, por isso recorreram aos psicólogos na intenção de conseguir ajuda. Com meses de observação os psicólogos perceberam que toda a vez que o menino se feria, sua mãe tentava lhe proteger conseguindo ainda mais atenção para si. Mesmo sabendo que a mãe estava seguindo um instinto de proteção eles tentaram moldar esse comportamento inadequado. Sempre que um menino se machucava eles o tratavam com indiferença e os deixavam num quarto “de descanso”, e se o menino não se machucasse, aí sim ele recebia atenção. Com trabalho árduo e diário o menino foi se machucando cada vez menos, até cessar por completo. Mesmo assim ainda faltava fazer com que ele usasse os óculos. A equipe conseguiu fazer com que ele usasse os óculos através de guloseimas. Assim se deu as primeiras terapias com autistas do modo que ainda é utilizado, iniciando a base do que hoje é conhecido como ABA.
Até a década de 70 as famílias tentavam esconder seus filhos, no entanto perceberam que se ninguém os vissem as pessoas não seriam tocadas pela causa. Foi a partir desse novo pensamento que os autistas começaram a serem vistos e fotografados. Viraram capas de revistas em busca de direitos até então negados. As famílias exerceram grande pressão na sociedade, buscando advogados que lutassem por eles no parlamento. Após grande debate, e com muita resistência, alguns estados cederam e incluíram os autistas no sistema educacional. Até hoje há luta por direitos mais específicos, tanto nos Estados Unidos quanto ao redor do mundo. A história do autismo é longa e muitos casos merecem serem expostos com detalhes, pois cada luta conta.